sexta-feira, 10 de março de 2017

0019) Um decálogo para o romance "hardboiled"




O romance policial hardboiled é aquele cujos alicerces são as obras de Dashiell Hammett e de Raymond Chandler, assim como a ficção científica tem como alicerces as obras de Jules Verne e H. G. Wells e a literatura de terror tem como base as obras de E. T A. Hoffmann e de Edgar Allan Poe.

Este foi o típico parágrafo de abertura para chamar a atenção do leitor e para levar metade deles à pena e ao papel para discordar, brandindo o nome de algum gênio menosprezado.

O autor William Lashner preparou um decálogo do hardboiled em que enumera o que para ele são as coisas que um autor pode aprender da obra de Hammett e Chandler.



(Hammett, por Jay Stephens)


1) Um detetive tem sempre um código de conduta.

A história de detetive é um dos gêneros que se baseiam em conflito. (Nem todos o são, ao contrário do que dizem os manuais de roteiro para cinema. Conflito é um simples recurso entre mil outros.) Há o conflito intelectual entre o assassino (que não quer ser apanhado) e o detetive (que quer saber quem praticou aquele crime). E o conflito mais sutil, no caso do hardboiled, entre o detetive e a polícia, que muitas vezes representa o Estado corrupto ou indiferente. Numa situação assim, o detetive nem pode ser um banana, um maria-vai-com-as-outras, nem um cara totalmente cínico e amoral. Ele tem que ter uma ética, e manter-se fiel a ela mesmo debaixo de cacete. É o que Marlowe faz. Apanha dos bandidos, apanha da polícia, apanha até do cliente, mas não abre nem prum trem.

2) Um detetive, no final das contas, trabalha é para si mesmo.

De certa forma este mandamento é consequência do anterior. Mesmo contratado e pago por alguém que precisa resolver uma situação difícil, o detetive não é apenas um boneco assalariado. Ele tem valores mais altos e mais profundos, que muitas vezes o fazem trabalhar contra os interesses de um cliente que ele descobre ser desonesto ou traíra. E que às vezes o levam a investigar um caso até o fim sem que ninguém lhe pague para isso, por mera teimosia ética pessoal, como faz Philip Marlowe em O Longo Adeus ou Adeus, minha Querida.

3) Ser durão não é a mesma coisa que ser violento

Marlowe é um sujeito grande e forte (“1,85 de altura, 85 quilos”, O Longo Adeus). São numerosas as cenas em que alguma mulher, no primeiro instante, diz “Uau” e passa a chamá-lo de “grandão” ou “bonitão”. Nem por isso ele já chega batendo. Na verdade, se alguém se der o trabalho de computar os golpes desferidos em todas as cenas de briga de Marlowe, talvez chegue a um empate do tipo 400 golpes desferidos e 400 golpes sofridos. Marlowe  pode ser brutal em muitos momentos (chutando o saco ou o nariz do adversário, por exemplo) mas nunca é cruel. (Cruel é quem sente prazer em ser brutal.)



4) Faça o seu cenário tornar-se único, personalizado.

Literatura é a criação de atmosfera através da seleção cuidadosa do que descrever e do que narrar. Se é um policial hardboiled ou noir que está sendo escrito, é possível criar essa atmosfera mesmo descrevendo cidades ensolaradas e aparentemente alegres como Salvador ou Rio de Janeiro. Basta escolher o que mostrar, e escolher elementos que sejam indiscutivelmente daquele cenário (que possam ser reconhecidos de imediato por quem conheça bem a cidade) mas que, omitindo todo o resto e costurados entre si, criem uma cidade nova. Diz Lashner:

O modo como Chandler cria Los Angeles nos seus livros sobre Marlowe é de tirar o fôlego, mas tenho certeza de que não é um retrato totalmente preciso da cidade do tempo em que ele escrevia. Ele não estava redigindo um guia turístico: em vez disso, ele transformou a cidade em algo completamente identificável e ainda assim totalmente seu, algo que vive ainda.




5) As cenas têm que ter música.

“Ter música” (“to sing”) é uma expressão que se usa muito para dizer que algo tem brilho próprio, tem valor estético em si, independente do conjunto. Algumas cenas de Chandler são inesquecíveis: a abordagem ao navio-cassino em Adeus, minha Querida, o tiroteio na chuva em O Sono Eterno, a descoberta da mulher afogada em A Dama do Lago, Marlowe no estúdio de filmagem em A Irmã Mais Nova. É uma questão de timing, de compressão e dilatação do tempo narrativo, somada ao ponto de vista (geralmente cínico) de Marlowe sobre o que está acontecendo, a riqueza de estímulos visuais, o ritmo, a escolha das palavras, a esgrima dos diálogos. Talvez o maior elogio que Chandler fez ao seu mestre Hammett foi: “Ele escrevia cenas que ninguém jamais escrevera antes”.

6) Mas não sacrifique o contexto e o enredo.

Chandler era famoso por se concentrar nas cenas individuais e não ligar muito para o enredo. Outros escritores noir têm essa mesma característica, como Cornell Woolrich. O ideal (sempre) é ser capaz de trabalhar bem nos dois extremos, ao mesmo tempo. Autores contemporâneos como Cormac MacCarthy ou Dennis Lehane são elogiados justamente por conseguirem isto.

7) Beba com moderação.

Chandler foi alcoólatra e Philip Marlowe talvez também o tenha sido, embora não toque no assunto. Marlowe toma um drinque de vez em quando, mas quem não toma um drinque de vez em quando? Marlowe às vezes bebe até o estupor, mas quem às vezes não bebe até o estupor?  O detalhe é que o livro não é em torno disso nem faz um grande alarde disso. A bebida, o cigarro, o xadrez, são a família de Marlowe. São as coisas com que ele se relaciona quando está sozinho. Lashner comenta a quantidade de álcool consumida pelo casal Nick e Nora Charles em The Thin Man, e afirma que isso reflete a vida de Hammett, que segundo Chandler tinha “uma atemorizante capacidade de ingerir Scotch”.



  
8) Deixe seu sexismo na porta de entrada.

Lashner, a meu ver, comenta erradamente O Longo Adeus dizendo que Philip Marlowe “não consegue parar de pensar sexualmente em nenhuma mulher que cruza sua órbita”. Não acho que seja o caso. Ele sente uma atração por Eileen Wade, e no final do livro vai para a cama com outra mulher, mas Marlowe não é um mulherengo, como os resenhadores às vezes o descrevem. Nos sete romances em que aparece, ele só leva uma mulher para a cama nos dois últimos. De resto, dá uns amassos numa e noutra, beija uma ou outra, mas é menos pela intenção de comer alguém do que para entrar no jogo de uma testemunha (ou possível suspeita) e ver até onde ela lhe repassa informações. Marlowe não é um machista, não é um conquistador, é até meio metido a cavaleiro andante, em termos da Califórnia dos anos 1940. O mais comum é que uma mulher fique furiosa com ele quando vê que a tentativa de seduzi-lo não surte efeito, como acontece com Vivian Regan em O Sono Eterno e com Orfamay Quest e Dolores em A Irmã Mais Nova.


9) Use sua própria linguagem.

Lashner observa (agora corretamente) que Chandler sempre reconheceu ser Hammett o criador do modelo, mas ninguém pode negar que a linguagem dos dois é diferentíssima. Chandler injetou no modelo de Hammett uma formação clássica que tinha, um certo verniz aristocrático, uma amargura e cinismo mais evidentes que os de Hammett, um floreio verbal que Hammett talvez desdenhasse, mas que ele, Chandler, impôs ao gênero como uma marcação a ferro-em-brasa. Linguagem é o que Chandler trouxe ao gênero, e uma linguagem que exprime também uma ética própria, uma visão do mundo de um personagem. Basta ver a imensa distância estética entre as histórias de Chandler com e sem Marlowe. Sem Marlowe, a linguagem ou era incipiente (nos contos de aprendizado) ou se dilui porque não tem ninguém por trás (nas poucas tentativas dele, já autor maduro, em falar sem ser através de Marlowe).



10) Quem manda é a Pulp Fiction

Lashner lembra que tanto DH quanto RC escreveram para Black Mask e outras revistas de pulp fiction, e que o pecado mais grave da pulp fiction é entediar o leitor. Chandler nunca deixou de lembrar aos seus críticos que escrevia esse tipo de literatura, um melodrama concentrado, onde as coisas não aconteciam necessariamente como na vida real, Seu olhar fotográfico para pessoas e cenários e a verossimilhança psicológica das ações que narrava enganavam às vezes os críticos, que elogiavam seu realismo. “Não é realismo,” insistia Chandler, “é melodrama (=é pulp fiction)”.  Mas ele defendia que esse tipo de literatura era capaz também de reproduzir a realidade, só que evitando o tédio e o didatismo de um certo realismo norte-americano da época, para o qual ele torcia desdenhosamente o nariz.

Aqui, o artigo original de Lashner:









quarta-feira, 28 de setembro de 2016

0018) As Detecções da Totalidade






Foi lançado recentemente o livro Raymond Chandler: The Detections of Totality (Verso, 2016, 96 páginas) de Fredric Jameson, um ensaísta e professor cujos estudos literários, que eu saiba, nunca tinham passado pela obra de Chandler ou sequer pelo romance policial.

O livro foi comentado por Angela Woodward (aqui: https://lareviewofbooks.org/article/like-glimpses-window-fredric-jameson-raymond-chandler/#!) na L. A. Review of Books.

A resenha é interessante e o livro parece ajudar a passar mais algumas camadas de imagens por cima das que a gente já tem sobre a obra de Chandler. É como se a gente tivesse que pintar um mural gigantesco, do tamanho daqueles de Portinari ou de Siqueiros, com dezenas de cenas, centenas de figuras, e o nome disso é “a Califórnia de Chandler”. Cada nova leitura é uma mão de tinta.

A atenção ao clima, ao detalhe significativo, aos comportamentos silenciosamente consensuais, é algo que Chandler utiliza muito, ora com a acuidade de um poeta, ora com a escrupulosidade de um contabilista.

Woodward diz:

Veja-se também o poder evocativo de certos objetos, onde “um carro é um ‘Ford’, um isqueiro é um ‘Ronson’, um chapéu é um ‘Stetson’.

É uma característica não só de Chandler ou do roman noir, mas de toda uma literatura de verniz pop de língua inglesa, nitidamente consciente das nuances da parafernália cultural que na Califórnia, de modo muito peculiar, é industrializada e vendida, mitologizada em seguida e vendida de novo.

É todo um viés particularizador, numa cultura de consumo estimulado e lazer mediado. Onde tudo vira substantivo comum, uma lâmina é uma gilete, uma cerveja é uma brahma. O reverso disso é que quando você diz: “Ele acendeu o cigarro com um Ronson que tirou do bolso de dentro do casaco”, é diferente de “Ele acendeu o cigarro com um isqueiro que tirou do bolso de dentro do casaco”.




Essas referências às vezes se tornam datadas. Você está tentando capturar um momento-presente qualquer e descobre, cinco anos depois, quando consegue publicar o livro, que as gírias, os modismos e as oscilações da bolsa dos valores políticos, mudaram totalmente.

OK, tudo perdeu a validade, mas se a qualidade literária do texto mantiver o livro à tona por algumas décadas, tudo aquilo que já se foi começa a ser banhado por aquela luz dourada da nostalgia, um sol que nasce pra todos os que envelhecem bem.

Alguns manejam isso que eu chamo de “nomes de marcas” melhor que outros. Quando o Neuromancer (1984) de William Gibson foi comparado ao romance policial hardboiled, geralmente as pessoas davam como exemplo disto o uso da narração em off (que Chandler afirmava ter inventado para resolver problemas narrativos e de estrutura em seu primeiro roteiro, Double Indemnity, com Billy Wilder).

Falam também no personagem calejado e cético, e na disponibilidade desse herói (o detetive particular, o cyber cowboy) para brigar, apanhar, ser preso, ser humilhado, escapar por pouco da morte, tudo para cumprir uma tarefa que lhe foi imposta por pessoas ricas e aleatórias que ele não consegue entender completamente.

Mesmo em suas trilogias recentes, que têm pouco de cyberpunk, nomes de marcas são um aspecto de peso no estilo de Gibson, que é ao seu modo um conceituador do pop como Andy Warhol. Zero History (2010) deve ser o primeiro livro de ficção científica cujo motivo central é a fabricação de jeans (conhecido como “Gabriel Hounds”).

É um aspecto chandleriano do universo cyberpunk, onde o autor tem o mesmo prazer em inventar marcas fictícias e em desenterrar marcas obscuras.


("Neuromancer", by byouin)

Dentro da FC, no entanto, é a mesma linha pop de autores como John Brunner, como Harlan Ellison, como Alfred Bester, como vários outros da new wave dos anos 1960 em diante. Os autores que Gibson admite terem sido os seus preferidos: Bester, J. G. Ballard.

Nomes de marcas são nomes genéricos, mas quando um cara diz “o meu Ford” o genérico se transmuda no pessoal, no afetivo, no que tem vida própria, carga afetiva própria. Sim, podia ser um Ford ou um Chevrolet, e eu quis um Ford. Isso é meu carro, meu violão, meu computador, meu casaco, meu isqueiro, são partes de mim.  

E nem todo mundo é igual. Do chapéu Stetson eu só sei vagamente o formato (preto, redondo, achatado, com aba dura, acho eu). Mas meu pai já teve isqueiro Ronson, e quando estou traduzindo uma frase e ele aparece, é um fragmento do Tempo pelo qual eu boto a mão no fogo, no fogo da memória, para aquecê-la um pouco.


Os Notebooks de Chandler mostram esse lado contabilista dele, de recortar colunas de jornal ou de revista, de fazer listas, de preparar glossários específicos, fazer um baú de descrições, roupas, ambientes, wisecracks, a serem transportados para a página quando necessário.

Gírias de batedores de carteira, regras e glossários de jogo de dados, como ler a data de fabricação de um fita de máquina de escrever; e símiles, e “chandlerismos”. Tudo anotado.

Talvez seja injusto usar o termo “contabilista” com uma conotação de atividade meramente burocrática, desinteressante. Fazer listas e catálogos é uma atividade cada vez mais associada à escritura de romances, ou de trilogias de romances,como vai acabar sendo dentro de algum tempo a unidade básica do gênero. De J. R. R. Tolkien a George R. R. Martin vem ganhando espaço na fantasia a catalografia dramatúrgica, que pressupõe em cada nome de rei ou de guerreiro uma porta para mil histórias e dez mil personagens.

O romance urbano de meados do século passado reflete bem isto na Califórnia de Chandler, um lugar onde o culto às marcas chega perto de se tornar uma religião a mais.


(Sunset Strip / "101 Things To Do in L. A.")







terça-feira, 12 de julho de 2016

0017) O detetive hardboiled



Esse termo usado para indicar os detetives durões do romance policial não se deixa traduzir muito bem. A idéia se refere a ovos excessivamente cozidos, até ficarem duros demais. (Em algumas escolas gastronômicas é refinado comer ovos apenas aquecidos.) Passa a sensação de dureza (=valentia, violência, brabeza), e também a percepção de algo ou alguém fervido, castigado, curtido pela vida.

São aqueles detetives de sobretudo e chapéu mole interpretados por Robert Mitchum, olhos de peixe morto, barba por fazer, a meio metro do ébrio de Vicente Celestino, ou então os policiais-de-delegacia durões e silenciosos de Richard Widmark .



O detetive durão é um arquétipo obrigatório da pulp fiction, e não tem que ser necessariamente um detetive particular, pode ser um policial de terno como o Coogan de Clint Eastwood. E pode ser um desses personagens, tão presentes nessa literatura, do sujeito durão mas pacífico, em cujos calos alguém, geralmente bandidos, pisam por desatenção, o que o transforma em caçador implacável até acertar as contas, como o protagonista de Le joli bleu de la Côte Ouest (1976), de Jean-Patrick Manchette.



Dessa esquina a gente descortina uma avenida de um milhão de histórias sobre detetives hardboiled, fustigados pela vida. Um homem como Philip Marlowe, dizia Chandler, é um fracassado, sabe disso e sabe que todo mundo sabe. Um homem com os talentos e a solidez dele poderia estar rico. Se não ficou rico, isso é um defeito. Marlowe poderia ficar rico se entrasse (low profile, sem alarde, só para fazer uma grana certa e cair fora) em qualquer dos esquemas que descobre ou que presencia. É pobre porque quer. Se quisesse, estava rico. Naquele tempo (naquele tempo!) muita gente de bem pensava assim.

Marlowe tem para algumas mulheres um certo poder hipnótico. Ele afirma estar entrando no jogo delas e elas acreditam. Nós sabemos que não, porque o que ele está prometendo fazer é totalmente anti-Marlowe. Mas ela é aquela proverbial ingênua de Hollywood, que pensa que a vida é um filme com ela. Mas é ela que está de figurante no filme dele.

Marlowe mente, mas percebe-se nele um certo jogo de cintura de certos puritanos que tentam conviver com os pruridos da própria consciência. Marlowe procura não mentir. “Você trabalha para Ballou, o agente?”, pergunta alguém. Marlowe diz apenas: “Estou vindo de lá agora.” E o outro: “Que legal, eu gostaria de trabalhar ali.” Ele subentendeu uma confirmação que Marlowe, textualmente, não lhe deu. Marlowe poderia jurar num tribunal que jamais afirmou que trabalhava com Ballou, e não estaria mentindo. Mas ele fez com que o interlocutor pensasse que sim, e não se ofereceu para esclarecer.

O puritano é um cara que, não podendo mentir para não ir arder em algum inferno (sei lá em que inferno teme arder esse povo), não mente, mas planeja toda sua navegação de modo a nunca precisar mentir. Dar um jeito de evitar que certas perguntas sejam feitas. Quando Marlowe é interrogado pela polícia, sempre chega um ponto em que ele diz, “parou”, e se cala.

Chandler criticava em muitos escritores contemporâneos seus um desconhecimento negligente de como funcionava o próprio universo que estavam descrevendo, o dos policiais, bandidos, quadrilhas, autoridades, etc.  Não conheciam porque eram homens pacatos que viviam em suas casas com esposa, crianças e contas a pagar. Uns poucos contavam histórias que tinham vivido. Experiência de ganhar a vida como detetive, antes, só Dashiell Hammett.



(Hammett,_by_Jay_Stephens) 


Ou então, cada um dava o joão-sem-braço que o favorecia: o grande amigo de Chandler, Erle Stanley Gardner, tinha experiência de tribunal e criou o advogado-detetive Perry Mason, herói de dezenas de duelos finais eletrizantes em pleno tribunal do júri.

Chandler se informava. Ele não tinha apenas a aparência de um contabilista (como ironizavam alguns colegas em Hollywood), tinha a mentalidade também. Estudava os direitos civis e profissionais de um detetive e qual a maneira mais adequada de estar sempre dentro da lei. A maioria dos autores (dizia ele) descreve investigações policiais sem pé nem cabeça, que fariam um policial de verdade estourar de riso e perder o respeito pelo livro.

Um policial, irritado com Marlowe, diz: “Sua licença está cassada, a partir deste instante.” Marlowe rebate: “Minha licença é válida até ser revogada pela entidade que a emitiu. Não antes.” O tira muda de assunto. Marlowe sabe que está na lei, e sabe que o policial também sabe. E que há pelo menos uma testemunha.

A cara de pau que tem Marlowe para se meter em situações que dificilmente dariam certo pode vir da grande admiração de Chandler pelo Perry Mason criado por Gardner.



Mason ficou famoso ao aparecer numa série de TV, interpretado por Raymond Burr, mas foi nos livros que mostrou todos os seus recursos, metendo-se em casos onde ele, frequentemente, precisava solver um homicídio para salvar seu cliente. É um personagem mais elétrico, mais inquieto e mais loquaz do que Marlowe, que é meio ensimesmado. O que os dois têm em comum é uma habilidade enorme com as palavras, muitas vezes dizendo uma coisa mas querendo significar o contrário. (Existe algo de Mason no advogado Farrell, que faz uma breve aparição nos capítulos finais de A Irmãzinha, que aliás deve sair em breve pela Alfaguara/Objetiva.)



Sabendo que pode vir a ser chamado a juramento, o herói se esforça para não precisar mentir. Marlowe sempre sabe ficar calado, e é com certo prazer que ele reitera: “Eu não disse nada.”  Em O Longo Adeus, quando Terry Lennox o procura em casa, desorientado, de arma na mão, Marlowe o recebe mas avisa:

Se você cometeu um crime ou qualquer coisa que a lei possa considerar um crime, estou falando de crime sério, não pode me dizer. Dois: se você tem conhecimento concreto de que algum crime assim foi cometido, também não pode me falar a respeito.

Ele sabe como poderá ser interrogado mais adiante, pela polícia, e sabe que para ele é bem melhor não saber, primeiro porque vai ter que mentir, e segundo porque pode acabar se traindo. Mas isso evita também que ele e Lennox aproveitem praticamente a única chance que terão, em bastante tempo, de conversar sobre o assassinato de que ele estava fugindo. Marlowe nunca terá 100%, nem digo de certeza, mas 100% de convicção sobre o que aconteceu na noite daquele crime.

Por um lado, Marlowe é um puritano incorruptível, até porque, em grande medida, ele próprio despreza os santarrões e os pregadores de moral. Marlowe de vez em quando mente, suborna, ameaça, dá bebida a alcoólicos para que desabafem melhor seus rancores ou suas suspeitas. Ele não é durão porque pega todas as mulheres (na verdade, ele só pega alguém  pra valer nos dois últimos livros), nem porque espanca os bandidos (no mínimo o placar de surras dele é empatado). É durão porque quando é preciso sabe ser cruel, sabe ser cínico para escarnecer das fraquezas da granfinagem que ele despreza. E porque é capaz de saber que uma pessoa vai se suicidar naquela noite e dizer aos criados que podem ir dormir, que está tudo bem.



Em O Longo Adeus, ele diz:
A outra parte de mim queria ir embora e ficar longe, mas essa era a parte a quem eu nunca dava ouvidos.  Porque se alguma vez eu a tivesse ouvido eu teria ficado na cidade onde nasci e trabalhado no armazém local e casado com a filha do patrão e tido cinco filhos e lido para eles os balões dos quadrinhos nos jornais das manhãs de domingo e dado uns tapas num e noutro que saíssem da linha e teria entrado em querelas com a esposa sobre quanto seria a mesada de cada um e quais os programas que eles tinham licença de assistir no rádio e na TV.  Eu podia até ter ficado rico, um interiorano rico, numa casa de oito quartos, dois carros na garagem, frango todo domingo e as Seleções do Reader’s Digest na mesa da sala, a esposa com o cabelo duro de permanente e eu com um cérebro igual a uma saca de cimento Portland.  Pode ficar pra você, amigo. Eu quero a cidade grande, sórdida, maculada e corrompida.




domingo, 17 de janeiro de 2016

0016) "Adeus, minha querida"





Muito se fala no espírito de cavaleiro andante de Philip Marlowe, em parte devido às ironias arturianas que Raymond Chandler usa para tornar mais vívido o ambiente, como nos parágrafos iniciais de O Sono Eterno, onde ele descreve um vitral com um cavaleiro tentando salvar uma donzela em perigo. 

No famoso trecho final do seu ensaio “A Simples Arte do Crime”, Chandler diz que seu detetive deve ser alguém “who is neither tarnished nor afraid”. É o cavaleiro sans peur et sans reproche dos velhos romances cavalarianos. 

Philip Marlowe, contudo, é mais quixotesco do que arturiano. Apanha tanto quanto Dom Quixote, e tem igualmente o hábito de forçar-se a ver uma Dulcinéia na pele de qualquer Lucrécia Bórgia que cruza o seu caminho.

 O ensaio “A Simples Arte do Crime” é um dos complementos que selecionei para a edição (em breve nas livrarias e na web) de Adeus, minha querida (Farewell, my lovely).  Será o quarto romance de Chandler traduzido e organizado por mim para a Objetiva/Alfaguara, depois de A Dama do Lago, O Longo Adeus e O Sono Eterno.




Outro complemento do livro são mais uma vez algumas cartas de Chandler, que são inimitáveis, e, em alguns sentidos, superiores aos romances. 

Chandler reduz a pó O Caso dos dez negrinhos de Agatha Christie, numa carta para seu colega da Black Mask, George Harmon Coxe. 

A Frederick Lewis Allen, da Harper’s Magazine, ele se queixa dos elogios meio erráticos que vem recebendo, inclusive de W. H. Auden, e comenta o quanto é difícil escrever com naturalidade quando se sente o peso dessas expectativas. Ele diz:

Aqui estou eu agora, na metade de um novo romance sobre Marlowe, divertindo-me um pouco (até empacar de novo) e de repente me aparece esse tal de Auden e diz que estou escrevendo sérios estudos a respeito de um ambiente criminal. E agora fico olhando para cada coisa que escrevo e dizendo a mim mesmo: Lembre-se, meu velho, isso tem que ser um sério estudo de um ambiente criminal. Você está sendo sério? Não. Isso é um ambiente criminal? Não, somente a corrupção mediana da vida, com o ângulo melodramático um pouco exagerado, não porque eu seja maluco pelo melodrama em si, mas porque sou realista o bastante para conhecer as regras do jogo. 

Em outra carta, Chandler se queixa da mola desenhada pelo ilustrador numa das capas mais famosas das edições de bolso do romance:



Há uma longa carta para seu velho amigo e editor britânico, Hamish Hamilton, onde o escritor conta detalhadamente os problemas de sua vida doméstica, com a doença de sua esposa Cissy se agravando a cada ano. E uma sabatina feita por Alex Barris, à qual ele responde com inusitada deferência, falando fatos biográficos, gostos, manias, opiniões.

Adeus, minha querida, era tido em alta conta pelo autor (numa das cartas aqui transcritas ele diz: “Acredito que Adeus, minha querida será considerado o meu melhor livro.”  É um dos seus enredos mais bem articulados, e parte de uma estrutura que Chandler voltaria a usar em O longo adeus: duas investigações paralelas em que Philip Marlowe se envolve, e que depois revelam pertencer a uma única trama. Os personagens são vívidos, a narrativa principal tem algumas transversais sem saída (histórias que se cruzam com a principal, sem ter a ver com ela) que ajudam a desnortear o leitor, sem deslealdade.

O diálogo, um dos maiores fatores do sucesso inicial de O sono eterno, voltou neste segundo romance de Chandler com toda a sua naturalidade e malícia. Marlowe está à procura de informações, aborda o porteiro de um prédio e a certa altura diz:

“Mostre as cartas”, disse eu. “Posso ler pra você um capítulo da Bíblia ou lhe pagar um drinque. Você quem diz.” “Irmão, eu acho que prefiro ler a Bíblia quando estou no aconchego do meu lar.”

Um sujeito esnobe, metido a artístico, recebe Marlowe em sua casa. O detetive se detém na sala para olhar uma escultura modernosa, e:

“Uma peça interessante”, disse ele, negligentemente. “Eu a obtive há poucos dias. É o Espírito da Aurora, de Asta Dial.”
“Pensei que fosse o Duas Verrugas numa Poupança, de Klopstein”, disse eu.

Bay City (a cidade imaginária, inspirada em Santa Monica) aparece em vários livros como um centro de corrupção, e Marlowe se explica:

“Tudo bem, é uma cidade boa. Tanto quanto Chicago. Você pode viver nela um tempão e não ver nenhuma metralhadora. Claro, é uma cidade legal. Provavelmente não é mais corrupta do que Los Angeles. Mas você só pode comprar um pedaço de uma cidade realmente grande. Uma cidade do tamanho dessa aqui pode ser comprada inteira, com a embalagem original e embrulhada em papel de presente. Essa é a diferença. É isso que me faz querer cair fora.”




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quinta-feira, 19 de novembro de 2015

0015) Por que sentimos medo no cinema?





Li há pouco um comentário sobre o filme A Travessia (The Walk), de Robert Zemeckis, sobre Philippe Petit, aquele francês que estica uma corda-bamba entre dois arranha-céus e a atravessa, equilibrando-se. O comentário é da jornalista Maria do Rosário Caetano,  e toca num ponto interessante do cinema de suspense, o gênero em que Raymond Chandler mais trabalhou em seu período como roteirista de cinema.

Diz Rosário:

Eu que vou muito ao cinema, sofri muito com sucessivas apresentações aquele trailer. (...) Quase morri de pavor. Suei as mãos, tapei os olhos, um sofrimento. De que adianta a gente saber que o cara está vivíssimo, pois poucos anos atrás o entrevistamos no Brasil. Nada adianta, o pavor (a sensação de vertigem) é o mesmo!!!!

O cinema de suspense se deleita em produzir em nós esse tipo de efeito. Contra toda lógica, ficamos nervosos. Mesmo que pensemos: “Calma! Que besteira! É só um filme! São atores e efeitos especiais!  Se tivesse acontecido alguma coisa, a gente saberia!”. Mas não adianta.


Na minha tradução recente de A Dama do Lago (Alfaguara, 2014), incluí o texto Doze anotações sobre a narrativa de mistério, uma das melhores coisas já escritas sobre o romance policial.  (O texto foi encontrado entre os papéis de Chandler após sua morte; nunca foi publicado em vida.)  São doze comentários complementados por 13 adendos. O último desses adendos discute justamente o filme de suspense, ou de menace (“ameaça, perigo”), que era o termo usado por Chandler.  Diz ele:

(...) 
13. Como já foi sugerido acima, todas as ficções dependem do suspense, seja de que modo for. Mas o estudo da mecânica desse tipo extremo chamado menace, ameaça, perigo, revela a curiosa dualidade psicológica na mente do leitor ou de uma platéia mediante a qual, por um lado, é possível estar aterrorizado pelo que pode haver do outro lado da porta e ao mesmo tempo saber que a heroína ou a protagonista não vai ser morta, visto que é a heroína ou a protagonista. Se uma personagem interpretada por Claudette Colbert está passando um espantoso perigo, temos certeza absoluta de que Miss Colbert não vai se machucar pela simples razão de que é Miss Colbert.  Como é possível, então, que a mente da platéia tenha medo real da ameaça, sabendo destes fatos notórios? 

Entre as muitas respostas possíveis, eu proponho duas. Nossas reações ao som e às imagens visuais, ou a sua evocação por descrições verbais, independe da nossa razão. O elemento primitivo do medo nunca está distante da superfície dos nossos pensamentos; qualquer coisa que conseguir desencadeá-lo pode suplantar temporariamente a razão.  Daí que os filmes de menace concentram seu apelo sobre essa emoção tão antiga e tão irracional.  Poucos homens estão livres de sua influência. 

A outra resposta que sugiro é que em qualquer espécie de projeção, seja ela literária ou de outro tipo, a parte é maior do que o todo. A cena que está diante dos olhos domina o pensamento da audiência; o indivíduo normal não faz nenhuma tentativa de conciliar isto com outros aspectos da história.  Ele é arrastado pelo que acontece naquela cena. Quando você termina de ler o livro, ele pode, mas não necessariamente, ser focalizado como um todo e ser lembrado pelos seus méritos quando visto assim; mas, no momento da leitura, o capítulo é o fator dominante. A visão da imaginação emotiva é muito curta, mas também muito intensa.


Claudette Colbert, Maid of Salem, 1937

As pessoas que leem apenas os romances de Chandler acabam não tendo acesso a essas reflexões sobre a narrativa literária ou cinematográfica, coisa em que ele era mestre. Tinha algumas opiniões radicais, e não tinha papas na língua, mas a sua abordagem é sempre a de um leitor atento capaz de introspecção e de autoanálise. O leitor capaz de interromper uma leitura e pensar: “Por que gostei tanto desse trecho? O que há nessas palavras, no modo como foram escolhidas e arrumadas, que as fez produzir um impacto tão grande na minha emoção?”  Chandler parecia fazer isso o tempo todo.

Parece que Hitchcock se preocupava também com isso, porque um dos grandes choques que o filme Psicose (1960) produziu na platéia foi justamente pelo fato de ser um filme com uma grande estrela de Hollywood (Janet Leigh) e a estrela era assassinada no primeiro terço do filme. As platéias da época tiveram um momento de incredulidade, por certo. Não pela morte da personagem – mas pela “morte da atriz”.  Na época, Janet Leigh tinha uma enorme popularidade, e  por isso Hitchcock sugeriu ao roteirista Joseph Stefano que a estrela do filme fizesse o papel da moça que morre logo no começo. As cabeças pensantes do estúdio (dizia Hitchcock) teriam dito desde logo: “Bem, essa personagem é assassinada logo no primeiro rolo do filme, então vamos dar esse papel a qualquer uma, e dar a Janet Leigh o outro papel, o da irmã, que tem uma história de amor.”  Para ele, isso seria a solução mais idiota: “Toda a questão girava em torno justamente do fato da estrela ser morta – é isso que torna a cena tão inesperada.”  Por causa desse detalhe, no lançamento de Psicose foi recomendado aos cinemas que não deixassem ninguém entrar na sala depois de começada a projeção. “Eu não queria que alguém entrasse no meio do filme e ficasse se perguntando onde estaria Janet Leigh,” disse o diretor.


Janet Leigh, Psicose, 1960

Em 17 de janeiro de 2016:

Essa idéia parecia ser cara a Chandler, porque ele usou uma paráfrase perfeita do que dissera em suas “Doze anotações...”, numa fala atribuída a Sherry Ballou, o excêntrico mas arguto agente de atrizes hollywoodianas, em A Irmãzinha (cap. 18):

“O medo de hoje,” disse ele, “é sempre maior do que o medo de amanhã. É um fato básico das emoções dramáticas que a parte é maior que o todo. Se você vir uma estrela glamurosa, num filme, numa situação de grande perigo, você teme por ela com uma parte da sua mente, a parte emocional. Tanto faz que a sua mente que raciocina saiba muito bem que ela é a estrela do filme e que nada de muito ruim vai acontecer com ela. Se o suspense e a ameaça não fossem capazes de suplantar a razão, haveria muito pouco drama no mundo.”


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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

0014) O gênero das veredas que se bifurcam



Um problema de xadrez, desses que aparecem na seção de variedades de um grande jornal diário (me dá prazer o fato de ainda poder usar referências dessa natureza), é uma pequena obra de ficção enxadrística.  Como num romance que se inicia, imaginamos, ao ver o problema, a existência de uma imensa teia de narrativas prévias, não-contadas, que desaguam naquela posição das peças, assim como na literatura imaginamos mil histórias anteriores ambientadas no universo que se põe em movimento quando lemos “Capítulo 1”. 

Um romance é uma história que vai acontecer, e um problema de xadrez é uma história de que não vimos o começo mas vamos ter que adivinhar seu possível fim.  Teoricamente seria possível prolongar indefinidamente aquela mini-partida, mas a certeza da existência de uma solução radical, uma guilhotina instantânea, leva o jogador a não descansar enquanto não a encontra.



Jogar xadrez é um duelo intelectual, uma relação densa e aguerrida entre duas mentes.  Já um problema de xadrez é um prazer solitário.  Uma mini-partida abstrata entre a mente que publicou o problema no jornal, e a mente que vai tentar resolvê-lo.  Parece muito com a literatura, e parece mais ainda com a literatura policial.  O enigma foi armado, as pistas estão ali na página, visíveis a qualquer leitor.  O xadrez solitário de Marlowe é um detalhe sutil de Chandler, fazendo uma homenagem discreta aos grandes mestres do romance detetivesco.


Comecei ontem, 14 de setembro, a tradução de The Little Sister, que provavelmente terá o título A Irmãzinha.  Não é um dos melhores títulos de Chandler, embora mantenha a linha de simetria já empregada em The Big Sleep e The High Window, e cuja quarta instância seria The Long Goodbye.

Quando a editora Alfaguara/Objetiva me propôs a tradução de 7 livros de Chandler (seis romances e uma coletânea de contos), um dos motivos que me levaram a aceitar foi a possibilidade de traduzir livros que eu ainda não tinha lido. Não sou um desses leitores “completistas”, que quando admiram um autor não descansam enquanto não devorarem tudo que ele publicou.  Eu gosto de ir convivendo. Tem dezenas de livros de meus autores preferidos que eu talvez nunca venha a ler, mas não tenho pressa, estou guardando, porque preciso de ineditismo de vez em quando para enriquecer a convivência.

Quando veio a proposta de Marcelo Ferroni eu ainda não tinha lido Farewell, my Lovely (1940), The Long Goodbye (1953) nem The Little Sister (1949). Já traduzi os dois primeiros, que são excelentes, livros curiosamente muito parecidos em alguns aspectos e diferentes em outros.

E agora vou traduzir, sem ter lido, The Little Sister (1949), que a crítica nunca incensou muito e de cuja história só tenho a lembrança difusa de um filme que vi 30 anos atrás num Corujão qualquer. Fui conferir agora: trata-se de um filme do qual não lembro rigorosamente nada, a não ser uma cena de Marlowe chegando às escondidas, durante a noite, a uma casa no meio do mato: Detetive Marlowe em ação (“Marlowe”, 1969, direção de Paul Bogart, com James Garner).  Aliás... minto. É nesse filme que Bruce Lee visita o escritório de Philip Marlowe e faz ali uma intervenção demolidora, e não estou sendo metafórico. Deve ter no YouTube ou por aí.


Há duas estratégias opostas (não são as duas únicas) para traduzir um livro. A primeira é a estratégia invasiva: parar tudo e ler o livro a ser traduzido, principalmente se for obra de ficção, em regime de tempo integral e dedicação exclusiva, até ficar encharcado dele. Conforme o caso, ir logo assinalando trechos difíceis e merecedores de maior atenção. Ter tudo em mente, principalmente o desfecho. Já começar a traduzir sabendo como o livro acaba, ter pensado bastante a respeito, ter lido alguma coisa sobre o livro (quando é o caso).

A outra é a estratégia infiltradora, ou de stealth.  É ir lendo e traduzindo ao mesmo tempo, no escuro, sem saber nada além da lembrança de um filme que é primo distante do livro que está sendo agora dissecado linha por linha. Muitas vezes essa estratégia requer uma revisão cuidadosa, porque oscilações de interpretação, de sentido e outras pesam sobre o jeito de traduzir, e quando sabemos no final o que de fato era aquilo é preciso voltar e entender melhor aquele trecho do original.


Gregory Rabassa traduziu para o inglês obras como Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, O Jogo da Amarelinha de Julio Cortázar e Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Um amigo meu, norte-americano, disse certa vez que gostaria de saber espanhol para escrever em espanhol e ser retraduzido para o inglês por Rabassa. Seu livro de memórias If This Be Treason (Nova York: New Directions, 2005) fala sobre sua formação como tradutor e depois comenta sucessivamente várias das obras que traduziu, como foi o processo, o que acha do autor, etc.  Aqui no meu blog Mundo Fantasmo faço uma breve anotação sobre esse livro, onde Rabassa explica por que prefere começar a traduzir (mesmo um romance complexo) "no escuro", sem ter lido o livro.


Quem começa a traduzir já sabendo como acaba o livro (no caso de um romance policial, “já sabendo quem é o assassino”) se põe na posição de um autor, que concebe toda a trama, fica com ela bem clara na imaginação, esfrega as mãos animado e começa a escrever. Quem começa a traduzir rigorosamente “do zero”, resolvendo frase a frase à medida que se apresentam, se põe na posição do detetive, que desembarca no plot sabendo que precisa prestar atenção a tudo, porque se existe fair play no universo da literatura (coisa que jamais existiu no mundo real cá fora) a solução está escondida em algum canto.


The Little Sister começa com uma cliente, que nem sequer é loura, chegando no escritório de Marlowe, onde este acaba de matar uma mosca.  Não é uma loura fatal.  É uma moça que parece uma bibliotecária, e que carrega no ombro “uma dessas bolsas quadradas e desajeitadas que fazem a gente pensar numa irmã de caridade  levando primeiros socorros para os feridos”.  Aí está a capa da primeira edição do livro, cuja ilustração é de um realismo digno dos romances de Theodore Dreiser.

Vale lembrar que The Little Sister é o quarto romance da carreira de Philip Marlowe. Àquela altura, já tinham sentado na cadeira dos clientes do em seu escritório uma mulher fatal como Vivian Regan em The Big Sleep e uma garota tomboy  dessas por quem todo mundo torce, como Anne Riordan em Farewell, my Lovely.  Na Irmãzinha, quando a moça se apresenta a Marlowe (ela liga antes, e aparece lá depois) é precedida por uma curiosa reflexão do detetive:

Lá estava ela. Nem precisou abrir a boca para eu saber de quem se tratava. E nunca ninguém pareceu tão pouco com Lady Macbeth.
Chandler sempre achou insatisfatórias tanto as capas quanto as vendagens dos seus livros pela editora de Alfred Knopf, o editor que acreditou nele como “o novo Hammett”.  Aqui vão reproduções das capas originais, pela Knopf, dos seus quatro primeiros livros:






Tudo isto tem que ser julgado de acordo com o panorama de projetos gráficos da época, linguagens de época, texturas, cores, tudo. Mas nenhuma dessas capas me passa uma idéia tão clara do conteúdo como estas quatro, dos livros de bolso que de 1943 em diante fizeram a fama de Chandler. Estas, sim, têm o espírito dos livros. Ou será que nos acostumamos a ler os livros pensando nelas?





A diferença entre os dois estilos dá uma tese.